Prevista no artigo 183 da Constituição e no artigo 1.240 do Código Civil (CC), a ação de usucapião especial de imóvel urbano possibilita o reconhecimento do direito ao domínio em favor da pessoa que, de forma pacífica e ininterrupta, tenha como sua área de até 250 m², por cinco anos, sem oposição, utilizando-a para moradia própria ou de sua família, desde que não seja proprietária de outro imóvel urbano ou rural.
Trata-se de uma forma originária de aquisição de imóvel que tem como objetivo atingir a função social da propriedade. Nas áreas urbanas, ela também é possível na forma do artigo 1.238 do CC, que disciplina a chamada usucapião extraordinária, com exigência de posse por 15 anos sem interrupção nem oposição.
No julgamento do Recurso Especial 1.818.564, o ministro do Superior Tribunal de Justiça Moura Ribeiro explicou que “a usucapião está claramente vinculada à função social da propriedade, pois reconhece a prevalência da posse adequadamente exercida sobre a propriedade desprovida de utilidade social, permitindo, assim, a redistribuição de riquezas com base no interesse público”.
Em relação a outros dispositivos legais que abordam a usucapião de imóvel urbano, a ministra Nancy Andrighi destacou, em seu voto no REsp 1.777.404, a importância da Lei 10.257/2001 (Estatuto da Cidade), que trouxe esclarecimentos adicionais sobre quem pode se valer do instituto: “Veio regulamentar o texto constitucional e, nessa regulamentação, os legitimados a usucapir são o possuidor individualmente ou em litisconsórcio, os possuidores em composse e até a associação de moradores regularmente constituída, na qualidade de substituta processual”.
Comum nas cidades brasileiras, o instituto é alvo frequente de discussões: a aquisição de metade do imóvel impede o reconhecimento da usucapião? Ela pode ser reconhecida se o prazo só for alcançado no curso do processo judicial? A ação judicial de usucapião depende do prévio pedido na via extrajudicial? O uso simultâneo do imóvel para moradia e comércio compromete a usucapião especial urbana? Essas e outras questões encontram resposta na jurisprudência do STJ.
Prazo pode ser reconhecido no curso do processo judicial
Ao julgar o REsp 1.361.226, 3ª Turma considerou ser possível o reconhecimento da usucapião de bem imóvel se o requisito do prazo for alcançado durante a tramitação do processo judicial.
No início do caso, os recorrentes buscavam o reconhecimento da usucapião extraordinária, alegando a posse mansa, pacífica e ininterrupta do imóvel por mais de 17 anos, mas a sentença e o acórdão do Tribunal de Justiça de Minas Gerais negaram o pedido, ao fundamento de que o requisito temporal não tinha sido atingido quando do ajuizamento da ação.
Ambos avaliaram que a situação estava sujeita ao artigo 550 do Código Civil de 1916, impondo-se o prazo de 20 anos para a usucapião extraordinária. Na data da sentença, entretanto, o juiz de primeiro grau destacou que a posse do imóvel já tinha mais de 20 anos.
De acordo com o relator, ministro Ricardo Villas Bôas Cueva, o magistrado deve considerar fato constitutivo ou extintivo de direito ocorrido após a propositura da ação, independentemente de provocação das partes. Nessa mesma linha, o ministro citou o Enunciado 497 da V Jornada de Direito Civil (STJ/CJF), segundo o qual “o prazo, na ação de usucapião, pode ser completado no curso do processo, ressalvadas as hipóteses de má-fé processual do autor”.
Além disso — destacou o ministro —, a contestação apresentada pelo réu não impede o transcurso do prazo. Para ele, a peça defensiva não é capaz de exprimir a resistência do demandado à posse exercida pelo autor, mas apenas a sua discordância com a aquisição do imóvel pela usucapião. “Contestar, no caso, impõe mera oposição à usucapião postulada pelos autores, e não à posse”, concluiu.
Aquisição de metade do imóvel não impede usucapião especial urbana
Em outubro de 2022, a 3ª Turma fixou que a aquisição de metade do imóvel não impede o reconhecimento da usucapião especial urbana. Para o colegiado, o fato de os moradores, autores do pedido, já terem a metade da propriedade não atrai a vedação do artigo 1.240 do CC, que impõe como condição não possuir outro imóvel urbano ou rural.
Ao dar provimento ao REsp 1.909.276, o relator, ministro Ricardo Villas Bôas Cueva, observou que a jurisprudência do STJ admite a usucapião de bem em condomínio, desde que o condômino exerça a posse com exclusividade. Para ele, essa interpretação se aplicava ao caso em julgamento, pois os recorrentes agiram como donos exclusivos: adquiriram metade do imóvel e pagaram as taxas e os tributos incidentes sobre ele, além de realizarem benfeitorias.
“Sob essa perspectiva, o fato de os recorrentes serem proprietários da metade ideal do imóvel que pretendem usucapir não parece constituir o impedimento de que trata o artigo 1.240 do Código Civil, pois não possuem moradia própria, já que, eventualmente, teriam que remunerar o coproprietário para usufruir com exclusividade do bem”, afirmou.
Ação de usucapião é viável se a enfiteuse não for registrada
A 4ª Turma, por maioria de votos, entendeu que é possível a ação de usucapião de imóvel urbano na hipótese em que, mesmo convencionada a constituição de enfiteuse entre o possuidor e o proprietário, o título respectivo não tenha sido levado ao registro imobiliário.
Para o colegiado, como o registro é um pressuposto de existência para a maioria dos direitos reais, a sua falta impede a configuração da enfiteuse, ainda que, durante anos, tenha havido o pagamento do foro e tenha sido exercido o direito de resgate. Inexistindo uma efetiva relação jurídica de direito real entre o senhorio direto e o foreiro – avaliou a turma –, não há impedimento à aquisição originária da propriedade pelo possuidor.
O caso teve origem em ação proposta por um casal que alegava ter a posse mansa e pacífica de terreno foreiro por 20 anos, tendo sido realizado o resgate da enfiteuse. A sentença considerou o pedido improcedente, e o Tribunal de Justiça de São Paulo manteve a decisão, sob o fundamento de que o prazo para a prescrição aquisitiva não flui enquanto perdura a enfiteuse, pois faltaria o chamado animus domini ao enfiteuta.
Ao analisar o REsp 1.228.615, o relator do voto que prevaleceu no julgamento, ministro Luis Felipe Salomão, explicou que o artigo 1.227 do CC, combinado com o artigo 172 da Lei 6.015/1973, indica o efeito constitutivo do registro em relação a direitos reais sobre imóveis, estabelecendo o princípio da inscrição, segundo o qual a constituição, a transmissão e a extinção de direitos reais sobre imóveis só ocorrem por meio da inscrição no cartório de registro imobiliário.
“A mera convenção entre as partes não é condição suficiente a ensejar a constituição da enfiteuse, fazendo-se mister a efetivação de um ato formal de ingresso do título no registro imobiliário, o qual poderia ensejar o verdadeiro óbice à aquisição originária da propriedade pelo enfiteuta – o qual inexiste na situação vertente”, concluiu o ministro ao dar provimento ao recurso especial.
Cabe usucapião extraordinária em área inferior ao módulo urbano
Sob o rito dos recursos repetitivos (Tema 985), a Segunda Seção estabeleceu que o reconhecimento da usucapião extraordinária, mediante o preenchimento de seus requisitos específicos, não pode ser impedido em razão de a área discutida ser inferior ao módulo estabelecido em lei municipal.
Para o relator dos recursos especiais (REsp 1.667.843 e REsp 1.667.842), ministro Luis Felipe Salomão, se o legislador quisesse definir parâmetros mínimos para a usucapião de área urbana, ele o teria feito de forma expressa, a exemplo da definição de limites territoriais máximos para a usucapião especial rural, prevista no artigo 1.239 do Código Civil.