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Artigo – Quebra de paradigmas: A força de escritura pública do termo declaratório de união estável

Artigo – Quebra de paradigmas: A força de escritura pública do termo declaratório de união estável

Em 16 de março de 2023 foi publicado o Provimento nº 141 da E. Corregedoria Nacional de Justiça do Conselho Nacional de Justiça – CN-CNJ – que surgiu com a finalidade de alterar o Provimento nº 37/2014 do CN-CNJ, para atualizá-lo conforme a lei 14.382, de 27 de junho de 2022.

Dentre as finalidades, a norma visa regulamentar o termo declaratório ou de dissolução de união estável perante o Registro Civil das Pessoas Naturais (art. 94-A da lei 6.015/1973 c.c. art. 733 do CPC), como também a alteração de regime de bens na união estável, a sua conversão extrajudicial em casamento, bem como o procedimento de certificação eletrônica, para aferir a data de início e fim da relação convivencial.

A união estável é definida como relação pública, contínua e duradoura entre duas pessoas com a finalidade de constituir uma entidade familiar (art. 226, § 3º da CF/1988 c.c. art. 1.723, caput, do CC/2002). O seu registro no Livro “E” do Registro Civil das Pessoas Naturais da sede da Comarca ou Primeiro Subdistrito é facultativo para os conviventes (art. 1º do Prov. 37/2014 da CN-CNJ).

A primeira regulamentação da norma constitucional que trata da união estável foi por meio da lei 8.971/1994, que definiu como companheiros o homem e a mulher que mantivessem união comprovada, na qualidade de solteiros, separados judicialmente, divorciados ou viúvos, por mais de cinco anos, ou com prole (concubinato puro). Posteriormente, a lei 9.278/1996 alterou esse conceito, não dispondo acerca dos pressupostos de natureza pessoal, tempo mínimo de convivência e existência de prole.[1 ]O Código Civil de 2002, inseriu o título referente à União Estável nos arts. 1.723 a 1.727, não sendo estabelecido período mínimo de convivência, apenas se fazendo menção a “convivência pública, contínua e duradoura e estabelecida com o objetivo de constituição de família”.

As mudanças decorrentes da lei 14.382/2022 acresceram na Lei nº 6.015/1973 situações novas e situações que antes apenas eram reguladas no âmbito administrativo, como é o caso do registro da União Estável e a conversão da União Estável em casamento. Ademais, o Provimento nº 141 criou um instituto que até hoje não se encontra presente em nenhuma lei, que é a mudança de regime de bens.

Na verdade, a lei 14.382/2022 criou uma “escritura registral”, na medida em que trata de uma outra forma de titulação em relação ao termo declaratório. Nesse sentido, além de incluir a União Estável registrada e a conversão da União Estável em casamento, estabeleceu o termo declaratório sem passar pelo crivo do tabelião de notas.[2] Nos termos do Provimento nº 37/2014, que regia o registro da União Estável, os títulos que autorizavam o registro eram: i. sentença declaratória de reconhecimento e dissolução, ou extinção; ii. ou a escritura pública de contrato e distrato envolvendo união estável, conforme determinava o artigo 733 do Código de Processo Civil.

Assim, foi criada uma antinomia, na medida em que o Código de Processo Civil apenas dispõe sobre a Escritura Pública e sentença, enquanto a lei 14.382/2022 criou a figura do termo declaratório, que até teria sentido se mantivesse atrelado à registrabilidade. Pelo texto da lei, o registrador do primeiro registro, deveria lavrar o termo e registrá-lo de forma simples, e não operacionalizando todos os direitos e obrigações da União Estável. Atualmente, o termo declaratório se tornou complexo e solto, podendo produzir efeitos jurídicos sem previsão legal para tal, de forma que nunca foi considerado um documento autônomo, mas sim vinculado à escritura ou sentença.

Apesar de o Provimento nº 141/2023 do CNJ arrolar quatro espécies de títulos admitidos para registro ou averbação, na verdade, o melhor seria dividi-los em três, quais sejam: i. sentenças (declaratórias de reconhecimento e dissolução); ii. escrituras públicas (declaratórias de reconhecimento e declaratórias de dissolução); e iii. termos declaratórios de reconhecimento e de dissolução de união estável formalizados perante o oficial de registro civil das pessoas naturais, exigida a assistência de advogado ou de defensor público no caso de dissolução da união estável nos termos da aplicação analógica do art. 733 da lei 13.105, de 2015 (Código de Processo Civil) e da Resolução nº 35, de 24 de abril de 2007, do Conselho Nacional de Justiça.[3] Ainda, observe-se que o referido termo pode ser: i. declaratório (com ou sem data anterior); ii. de distrato (com ou sem certificação eletrônica) iii. de reconhecimento sem registro; e iv. de distrato sem registro, com data ou sem data.

No Brasil, o sistema de mutação jurídica, por regra, é do título e modo, de forma que a causa da mutação jurídico-real está no título, notadamente um contrato, que será o negócio levado a registro para que ocorra a transferência do direito real[4]. O Termo de Declaração de União Estável e de Distrato de União Estável, que pode ser levado a registro ou averbação sem passar pelo crivo do Tabelião de Notas, obra contra o sistema, na medida em que não é competência do registrador confeccionar títulos, cuja essência é da função notarial. Antes de lavrar o ato notarial, a prudência notarial exige que o tabelião inicie a profilaxia real, que não se refere apenas a vícios intrínsecos e formais que possam eivar o título, mas diz respeito à satisfação de vontade das partes e ao esclarecimento quanto a todos possíveis efeitos reais ou hipotéticos do ato que está sendo praticado.

O termo declaratório, conforme o Provimento nº 141/2023 é um documento público, registral, facultativo e autônomo, e pode ser simples (em que o próprio registrador lavra) ou complexo (cumulado com a certificação eletrônica, em que há retroatividade de prazo). O confeccionador de títulos, por natureza, é o tabelião de notas, desde a Idade Média. A fé pública tabelioa é a presunção legal da verdade de que certos agentes públicos, a quem a lei reconhece como investidos (probos e verdadeiros), e atribui-lhes o poder de juridicizar a vontade das partes com a qualidade de título a ingressar no sistema registral, sem que se possa, em muitas ocasiões, fazer a indagação da verdade intrínseca dos referidos títulos.[5] Não é sem sentido que a parte geral do Código Civil contempla o artigo 215, referente à Escritura Pública.

O notário, particular em colaboração com o poder público, delegatário de serviço, goza da referida fé pública administrativa na lavratura de atos, contratos, bem como no reconhecimento de firma, autenticação, entre outros[6]. A referida fé tem uma missão preventiva, de profilaxia jurídica. Portanto, destruir-se-á todo um sistema constituído ao longo de séculos, com funções distintas entre o notário e registrador, na medida em que passou para este a função de confeccionar o termo declaratório que, inclusive, tem mais força do que a Escritura Pública, na medida em que é autossuficiente e o registro no Livro E é facultativo e pode fixar prazo distinto do da lavratura do ato.

A doutrina e a jurisprudência administrativa interpretavam o termo declaratório como o documento preparatório, facultativo, porém vinculado ao ato registral, para o registro no Livro E do Registro Civil de Pessoas Naturais antes de sua regulamentação, devido à falta de previsão nos incisos do art. 94-A da Lei de Registros Públicos, como título hábil para o registro.[7]

A união estável é o estado de fato, cujo registro em Livro independentemente do título hábil, não altera sua natureza informal. Isto porque, basta a configuração da affectio maritalis, durante determinado período de tempo, para existir a União Estável. O registro visa mais a tutela das próprias partes do que o terceiro de boa-fé, na medida em que a situação de fato se extingue pela mera separação do casal. Já no casamento, há uma presunção de manutenção.

A regra geral é que a união estável, no registro, tem eficácia ex nunc, a não ser na hipótese da judicialização de seu reconhecimento, na qual a dialética processual garantirá a aferição da data de início por parte da jurisdição.  Em uma segunda hipótese, a escritura pública, que consta expressamente como data de início a data da confecção do ato notarial, com cláusula expressa no instrumento. A certificação eletrônica, segundo a lei 14.382/2022, deveria ser a mera aferição, por parte do registrador, de existir no sistema eletrônico uma União Estável entre as mesmas partes registrada e por ocasião da conversão, constar a referida data na conversão. Porém, o provimento nº 37 passou a criar um procedimento administrativo autônomo, no qual o registrador faz o papel da jurisdição e fixa uma data de início da União Estável, com todas as dificuldades para aferir a data de origem da referida união.

São características do termo declaratório de união estável, ser documento formal, expresso, autônomo e uniforme, pois prevê a presença de ambos os conviventes em seu requerimento junto ao oficial de registro civil de sua livre escolha. (Prov. 37/2014 do CN-CNJ, art.  1º-A). Conforme mencionado, se o termo declaratório é autossuficiente e o registro no Livro E é facultativo, o termo é dotado de maior fé pública do que a escritura pública, como também economicamente parece mais atrativo, pois o valor dos emolumentos será 50% do procedimento de habilitação (Prov. 37/2014 do CN-CNJ, art.  1º-A, § 6º, inc. I), com margem para realização do procedimento de certificação eletrônica para definição precisa da data de início da relação convivencial.[8]

Outra questão correlacionada é que o registro no Livro E do Registro Civil de Pessoas Naturais não tem a oponibilidade erga omnes produzida pelo Registro Imobiliário, pois não gera obrigação a terceiros de consultar a sua base de dados. Ademais, o Registro Civil é fragmentado, estabelecido conforme o domicílio dos conviventes, não tendo uma base fixa e sólida de consulta, como o Registro Imobiliário. Por fim, o registrador civil deve resguardar a proteção de dados, o que leva muitas vezes a óbices à consulta por terceiros.

O registro de imóveis tem por presunção e ficção o conhecimento por parte de terceiros, que não podem alegar o desconhecimento das informações ali apresentadas. A consulta é livre e imotivada à sua base de dados matricial. Todos os terceiros são obrigados a consultar, na medida em que os direitos reais têm como essência a característica da oponibilidade perante todos.

No registro civil das pessoas naturais, os dados assentados devem ser informados e provados a terceiros, como o seu estado civil. A publicidade é informativa de seus assentos. O registro em Livro E gera eficácia perante terceiros, apenas quando o próprio titular informa os dados ali presentes, ou são obrigados a apresentar assentos reflexos, como por exemplo, casamento, com anotação do assento. Por consequência, obriga a anotações nos demais Livros do acervo registral, porém, não gera oponibilidade contra todos.

Como o casamento tem presunção de veracidade, os cônjuges separados de fato devem fazer prova de que não mais estão casados, pois, estar-se-á diante de relação jurídico-formal. Por isso, as partes exigem a apresentação das certidões de separação e divórcio averbadas no assento de casamento, ou a de óbito, para entabularem relações jurídicas com aquele que foi casado, ou a declaração de separado de fato e prova dessa circunstância (CC, art. 1.547).

A união estável no Livro E não tem estes contornos. Após o seu registro, os conviventes não têm a obrigação, por lei, de averbar esta dissolução no registro da união estável, pois a relação é fática e informal por essência e, portanto, não se presume (CC, art. 1.723).

Feita estas considerações, o termo declaratório consistirá em afirmação, por escrito, de ambos os companheiros perante o ofício de registro civil das pessoas naturais de sua livre escolha, com a indicação de todas as cláusulas admitidas nos demais títulos, inclusive a escolha de regime de bens (CC, art. 1.725), e de inexistência de lavratura de termo declaratório anterior entre as mesmas partes. O termo passou a ser um título autônomo, por isso que a norma administrativa requer a prevenção da existência de termos anteriores. Trata-se, dessarte, de documento público, registral, com “status” maior que a própria escritura pública, fazendo prova plena (CC, art. 215, caput).

A analogia com o art. 733 do CPC, realizada pelo Provimento, determina que são requisitos do termo de dissolução da união estável a participação de advogado ou defensor público, a definição dos bens comuns que se transmutarem em condomínio, ou ainda que devam ser partilhados. Ademais, deve constar de seu corpo, ou não, o acordo para pagamento de pensão alimentícia e a manutenção ou alteração do nome dos companheiros.[9]

O oficial de registro, após a formalização do termo, deve arquivá-lo em pasta própria, preferencialmente eletrônica, e abrir oportunidade para os companheiros optarem pelo registro no Livro “E”, ou não. Caso optem pelo registro, o oficial deve enviar o título para o Registro Civil das Pessoas Naturais, ou então, caso tenha esta atribuição, fazer o registro.

Inúmeras decorrências práticas do termo declaratório e os seus efeitos ainda serão levantadas pela doutrina. De fato, a inovação administrativa, apesar de conceder o amplo acesso a este meio de prova, de contornos ainda não definidos por completo, acabou por subverter o sistema, que sempre concedeu ao tabelião, a função de confeccionar títulos, respaldado na profilaxia notarial. Cabe sempre reflexão e só o tempo poderá gerar maturação com outras considerações apresentadas pela comunidade juridica.

Sejam felizes!

__________[1] Art. 1º da lei 9.278/1996.[2] Art. 94-A da lei 6.015/1973, incluído pela lei 14.382/2022.[3] Art. 1º, §3º do Provimento nº 141/2023.[4] KÜMPEL, Vitor Frederico. Sistemas de transmissão imobiliária sob a ótica do registro, São Paulo, YK Editora, 2021.[5] KÜMPEL, Vitor Frederico, FERRARI, Carla Modina. Tratado Notarial e Registral: Tabelionato de Notas, 2ª ed., São Paulo, YK Editora, 2022.[6] Art. 6º da lei 8.935/94[7] 2ª VRPSP – Pedido de Providências: 1089074-73.2022.8.26.0100 – MM. Juiz da 2ª Vara de Registros Públicos de São Paulo. Marcelo Benacchio – Data de Julgamento: 30/09/2022 Data DJ: 30/09/2022[8] Isto não foi aceito pelo Superior Tribunal de Justiça para a escritura pública, o que se refletiu no Provimento 37/2014 do CN-CNJ, art. 1º, § 4º, inc. II e III. Para constar a data de início da relação, devem os companheiros adotar a data da lavratura do ato notarial, somada à declaração de que esta reflete a verdade.[9] No Pedido de Providências, nº 0004621-98.2022.2.00.0000, proposto pela Associação de Direito de Família e das Sucessões – ADFAS -, no C. Conselho Nacional de Justiça, do teor da decisão do Corregedor Nacional, Min. Luís Felipe Salomão se extrai, do obiter dictum, o seguinte: “(…) parece evidente que a escritura pública declaratória e o termo declaratório de união estável são instrumentos distintos, que não se excluem, cuja faculdade de escolha é do cidadão, de acordo com a sua conveniência e oportunidade. Sobre a presença de advogado na lavratura dos títulos extrajudiciais de dissolução da união estável – escritra pública e termo declaratório – em observância interpretação complementar e por analogia às normas, há disposições legais que não permite a prática de determinados jurídicos sem a presença de advogado ou defensor público e que outros envolvendo interesses de incapazes e nascituros, não podem ser praticados no âmbito extrajudicial (CPC, art. 733, caput e §§)”.

Vitor Frederico Kümpel é juiz de Direito em São Paulo e doutor em Direito pela USP.

Fernando Keutenedjian Mady: Doutorando em Direito Civil-Romano pela USP, Mestre em Direito Administrativo pela PUC/SP, e tabelião de notas em Monções, São Paulo.

FonteMigalhas