1. Para explicitar a possibilidade do registro da alienação fiduciária ‘subsequente’ e da constituição de bem imóvel ‘superveniente’ em garantia, bem como detalhar alguns poucos procedimentos a serem observados na contratação, os legisladores responsáveis pelo Projeto de lei 4.188/21 incluíram nove parágrafos ao texto vigente do art. 22 da lei 9.514/97.
Em rápido resumo cuida a alteração legal proposta de permitir que o fiduciante titular de direitos reais de aquisição decorrente de negócio jurídico de alienação fiduciária de bem imóvel possa contratar a constituição de novas garantias sobre o mesmo imóvel, com o mesmo credor fiduciário ou com terceiros, ficando suspensa a eficácia das alienações fiduciárias ‘subsequentes’ até o cancelamento da precedente e ‘superveniência’ da propriedade plena.
A alienação fiduciária ‘subsequente’ de bem imóvel em garantia que se pretende inserir na lei 9.514/97 em nada difere da alienação fiduciária já tratada no citado art. 22, exceto pelo fato de não haver – no momento da contratação – imóvel a ser alienado e, consequentemente, inexistir garantia ou fidúcia a serem efetivamente constituídas.
Parece complexo, mas é tão simples quanto aquiescer o credor com o pagamento ou garantia de pagamento de dívida lastreado em cheque pré-datado para provisão futura de fundos.
Aliás, a redação original do PL 4.188/21 foi muito criticada e considerada propensa a desentendimentos. Confesso que, quase dois anos passados, atento à confusão que legisladores e articulistas especializados experimentam com os adjetivos “subsequente” (o contrato de alienação fiduciária) e “superveniente” (a propriedade adquirida) mudei de opinião e sonho atualmente com o retorno da expressão inicial “alienação fiduciária de imóvel já alienado fiduciariamente”.
2. Na verdade, não há qualquer novidade na matéria.
De fato, nunca houve impedimento legal à contratação da alienação fiduciária de bem imóvel ‘superveniente’, nem ao seu registro, podendo as partes, “atuando no campo da autonomia da vontade e da liberdade de contratar, convencionarem mútuos ou outros negócios financeiros ou comerciais que se completem com garantia fiduciária cujo registro – imediato – terá efeito meramente assecuratório, condicionada a efetiva constituição ao cancelamento futuro de garantia anteriormente registrada.”1
No mesmo sentido, o insigne advogado Dr. Melhim Chalhub leciona, há pelo menos uma década “ser legalmente possível a constituição de nova propriedade fiduciária ou hipoteca sobre a propriedade superveniente, que o fiduciante vier a adquirir,” bem como, que o contrato “é objeto de registro no Registro de Imóveis, na matrícula do imóvel em questão, por força do art. 167, I, 29, da lei 6.015/73, segundo o qual devem ser registradas a venda pura e a venda condicionada” 2
De igual forma, já em 2011, veio a lume – no enunciado nº 506, aprovado na V Jornada de Direito Civil promovida pelo Conselho da Justiça Federal, a possibilidade de “estando em curso contrato de alienação fiduciária, é possível a constituição concomitante de nova garantia fiduciária sobre o mesmo bem imóvel, que, entretanto, incidirá sobre a respectiva propriedade superveniente que o fiduciante vier a readquirir, quando do implemento da condição a que estiver subordinada a primeira garantia fiduciária; a nova garantia poderá ser registrada na data em que convencionada e será eficaz desde a data do registro, produzindo efeito ex tunc.”
Apesar da inexistência de impedimento legal e da concordância doutrinária e jurisprudencial, a alienação fiduciária ‘subsequente’ não contou com o entusiasmo dos registradores de imóveis e das instâncias administrativas do Poder Judiciário, notadamente no Estado de São Paulo, que entenderam imprescindível o cancelamento da garantia anterior, enquanto inexistente previsão legal específica para o pretendido registro.
Essa destoante rejeição e a crise econômica e financeira que assolou o país a partir de 2015 foram suficientes para o arquivamento do projeto que agora retorna, inserido ao texto original do inebriante “Marco Legal das Garantias”, trazendo a “previsão legal específica para o pretendido registro”, para a tranquilidade dos registradores imobiliários e da Corregedoria de Justiça do Tribunal paulista.
3. Sobre a redação original do projeto de lei apresentado pela Câmara Federal em meados do ano passado dissemos, há um ano, que:
“Malgrado a redação claudicante e propensa a desentendimentos, os parágrafos 3º a 10 incluídos ao art. 22 da lei 9.514/97 se prestam razoavelmente a evidenciar a possibilidade e as condições de alienação fiduciária do bem imóvel superveniente ou subsequente, registrável na matrícula imobiliária desde a data da celebração do contrato e eficácia mantida suspensa e condicionada à aquisição da propriedade pelo pagamento e ao cancelamento do registro da propriedade fiduciária anterior, e se mostram suficientes para mitigar o risco de um novo negócio jurídico e cumprir as condições de proteção ao crédito impostas pela legislação financeira.”3
O texto foi agora retomado, revisado e aprovado no Senado Federal que alterou substancialmente seus dispositivos originais no parecer final divulgado no dia 05 de julho passado, para, seguindo a tradição daquela casa, torná-los ainda mais obscuros.
Assim, os parágrafos 3º e 4º introduzidos originalmente ao art. 22 da lei, admitiam o registro imobiliário de contrato de “alienação fiduciária de imóvel já alienado fiduciariamente” desde a data de sua celebração, com eficácia ‘ex nunc’, desde o seu registro”, condicionada à efetiva aquisição do imóvel pelo fiduciante.
No entanto, a redação final do referido parágrafo 3º mantém a admissão do registro desde a data da celebração do contrato, para tornar-se eficaz, em transcrição literal, “a partir do cancelamento da propriedade fiduciária anteriormente constituída”, expressão que reaviva antigas divergências doutrinárias e embute os genes da insegurança jurídica e da judiciarização.
A redação original do já então desnecessário parágrafo 5º reiterava o disposto no art. 31 da lei para facultar ao credor beneficiário da garantia ‘superveniente’ a subrogação na propriedade fiduciária, mediante o pagamento da dívida e foi alterada para continuar igualmente prescindível.
Os parágrafos 6º, 7º, 8º e 9º do projeto de lei, que tratam do vencimento antecipado das demais obrigações contratadas no caso de “inadimplemento de quaisquer das obrigações garantidas pela propriedade fiduciária”, foram revistos e alterados para tornar dependente de “pacto expresso na alienação fiduciária mais antiga ainda vigente” a declaração do vencimento antecipado dos créditos do mesmo titular. Considerando que o passado “é folha morta” nos parece muito mais plausível e eficaz exigir que as partes pactuem sobre isso nas contratações ‘subsequentes’.
Finalmente, o parágrafo 10º da redação original foi aparentemente suprimido ou substituído pelo 11º do parecer final e ambos dispõem sobre a proteção e subrogação dos credores ‘subsequentes’ no direito à percepção da importância que restar do produto de eventual venda do imóvel em leilão público, inclusive nos casos de recuperação judicial do fiduciante.
4. Dada a matéria aqui tratada, tomo a liberdade de resgatar tese desenvolvida e exposta no XLIV Encontro de Oficiais de Registro de Imóveis promovida pelo Instituto de Registro Imobiliário do Brasil – IRIB, em Curitiba, no ano de 2017, para cotejar as simetrias entre as características da alienação fiduciária ‘subsequente’ que ressurge no PL 4.188/21 e as do caucionamento do direito real de aquisição atribuído aos fiduciantes na garantia fiduciária, com vistas a proporcionar melhor aproveitamento das garantias e conferir maior segurança jurídica ao credor fiduciário, nas seguintes condições:
(a) o valor do direito real de garantia (DRA) de que trata o art. 1.368-B do Código Civil, aqui cuidado, corresponde exatamente à diferença entre o valor de avaliação ou mercado do imóvel objeto da garantia e o montante do saldo devedor contratado e garantido pela alienação fiduciária;
(b) por ser direito disponível e ter caráter patrimonial, o DRA pode ser cedido, utilizado como garantia de negócios em geral e objeto de constrição judicial, incluído no rol de bens penhoráveis disposto no art. 835 do Código de Processo Civil;
(c) assim como a alienação fiduciária ‘subsequente’ (no pressuposto de que o texto atual venha a ser sancionado) pode ser contratada e a propriedade fiduciária ‘superveniente’ registrada com eficácia suspensa para a garantia de novas operações de crédito, o DRA pode ser caucionado para garantia de novas operações, nos termos dos arts. 17, III e 21 da lei 9.514/77 e averbado na matrícula do imóvel objeto da garantia, conforme admite o inciso 8, item II, do art. 167 da lei 6.015/73, com os efeitos erga omnes e ex tunc dela decorrentes para constituir garantia suficiente aos negócios jurídicos contratados após a constituição da alienação fiduciária originária, conferindo ao credor fiduciário ou a qualquer terceiro segurança tão eficaz quanto a alienação fiduciária ‘subsequente’, por exemplo, na concessão de crédito com prazo inferior ao da alienação fiduciária precedente`;
(d) embora não conste expressamente do projeto de lei em comento, as instituições financeiras haverão de estabelecer exatamente o valor atribuído ao direito real de aquisição e suscetível de caucionamento como limite de crédito, na contratação de alienação fiduciária ‘subsequente’, em respeito às normas financeiras, aos critérios de concessão de créditos e constituição de garantias geralmente aceitos e às políticas de risco que norteiam as operações bancárias;
(e) o registro da alienação fiduciária ‘subsequente’ não implica na oneração do direito real de aquisição que permanecerá passível de cessão, caucionamento etc., em situação que precisará ser administrada com extremo rigor pelo credor que optar pela alienação fiduciária ‘subsequente’;
(f) da mesma forma, a existência de averbação do DRA caucionado não impedirá o registro de alienação fiduciária ‘subsequente’, porém impedirá sua excussão pelo credor fiduciário ‘subsequente’, inclusive quanto ao valor que sobejar à dívida do fiduciário anterior no caso de venda do imóvel em leilão público;
(g) da constituição de uma alienação fiduciária ‘subsequente’ emergirá simultaneamente um novo direito real de aquisição, também em caráter suspensivo, que subsistirá exposto e sujeito aos interesses de terceiros credores por todo o período contratual, vulnerando a garantia;
(h) na hipótese de descumprimento contratual a caução poderá ser executada a qualquer momento com a excussão dos direitos caucionados e possibilidade de adjudicação pelo credor, independentemente de oferta pública, proporcionando a recomposição do crédito;
(i) na mesma hipótese, eventual execução forçada da alienação fiduciária ‘subsequente’ só poderá ser exercida em tempo futuro e determinado (liquidação do contrato original ou mais antigo ou naquilo que sobejar no leilão público) por constituir direito pessoal com potência de direito real;
(j) finalmente, a própria e desejável situação de regular adimplência contratual na alienação fiduciária precedente potencializa o risco do credor fiduciário ‘subsequente’, na medida em que as amortizações da dívida garantida acrescem valor ao DRA em benefício dos interesses do devedor e de terceiros detentores de direitos caucionados ou, ainda, de terceiros credores eventualmente interessados que poderão valer-se dos meios legais e judiciais de constrição para alcançá-lo.
5. Apesar dos tropeços legislativos, a alienação fiduciária ‘subsequente’ configura uma chance esperada há muitos anos pelo mercado de crédito imobiliário de performar uma garantia complementar que permita o aproveitamento do dead capital – parcela existente nas garantias fiduciárias que corresponde ao desnível entre o saldo devedor da operação principal garantida e o valor de avaliação do imóvel sobre o qual foi constituída a propriedade fiduciária, que perduraria inexplorado e crescente por todo o período contratual, desperdiçando oportunidades de crédito e garantia.
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1 ROCHA, Mauro Antônio. Alienação Fiduciária de bem imóvel – Da supergarantia do crédito imobiliário ao big mac dos negócios financeiros. São Paulo: Editorial Lepanto, 2022. P. 115.
2 CHALHUB, Melhim Namem. Parecer jurídico sem data, elaborado para a Caixa Econômica Federal, em 2017.
3 ROCHA, Mauro Antônio. Considerações críticas sobre o PL 4.188/21 que institui o Marco Legal das Garantia, publicado no boletim Migalhas, edição de 12/7/02.
Fonte: Migalhas