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Extrajudicialização de divórcio e inventário: o legislador pode ir além

1. Introdução

Recentemente, o Conselho Nacional de Justiça (CNJ) fez o que foi viável dentro dos limites do poder regulamentar, alterando a Resolução nº 35/2007 por meio da Resolução nº 571/2023.

Fê-lo sob a proatividade de um dos mais destacados Corregedores Nacionais de Justiça da história – o Min. Luis Felipe Salomão – e ao abrigo das mais brilhantes composições de Conselheiros presididos pelo prolífico Min. Luís Roberto Barroso.

O CNJ, dentro dos limites delineados pela legislação atual, avançou na extrajudicialização dos clássicos procedimentos escatológicos dos Direitos de Família e das Sucessões, nomeadamente os que versam sobre: divórcio, separação de fato, extinção da união estável e inventário e partilha.

No Direito de Família, os limites legais são dados pelo art. 733 do Código de Processo Civil (CPC)1, que admite os referidos procedimentos extrajudiciais se o casal moribundo não tiver nascituro nem filho incapaz.

No Direito das Sucessões, a fronteira infralegal é delineada pelo art. 610 do CPC2, que disponibiliza a via extrajudicial do inventário e partilha quando inexistir estes dois elementos: testamento ou interessados incapazes.

Como regras básicas de hermenêutica ensinam, a lei, por vezes, pode dizer menos do que queria (“minus scripsit quam voluit”), pois a infinitude da casuística nem sempre é captada ex ante pelo legislador.

A correção e o esclarecimento interpretativos da lei podem ser feitos por meio de ato infralegal, caso das supracitadas resoluções do CNJ.

Com notável prudência, o CNJ avançou bastante na extrajudiciais ao alterar a Resolução nº 35. Desde logo, indagamos: o CNJ poderia ter avançado mais?

Entendemos que foi muito prudente a solução da Corte Administrativa nesse momento histórico e talvez, no futuro, possa-se encontrar amparo para maiores avanços na regulamentação. Mas a verdade é que o bastão para novos avanços está atualmente nas mãos do legislador, que deveria expandir as fronteiras da extrajudicialização dos supracitados procedimentos dos Direitos de Família e das Sucessões.

2. Avanços na extrajudicialização dos Procedimentos Escatológicos de Direito de Família

No Direito de Família, passamos a destacar os principais avanços do CNJ nos referidos procedimentos extrajudiciais.

2.1. Divórcio ou extinção da união estável com filhos incapazes ou nascituro

O divórcio ou a extinção da união estável podem ser realizados mesmo quando houver nascituro ou filhos incapazes, com uma condição: as questões conexas dessas pessoas vulneráveis já têm de estar resolvidas na via judicial (art. 34, § 2º, Resolução nº 35). Estamos a nos referir às questões de alimentos e de guarda (incluindo visitação) dessas pessoas vulneráveis.

De fato, quando tratamos de divórcio ou extinção da união estável, temos 3 tipos de questões jurídicas envolvidas: (1) a questão principal, que diz respeito à mudança do estado civil; (2) a questão conexa do casal, que alude à partilha dos bens e aos alimentos entre os ex-consortes; e (3) a questão conexa dos filhos incapazes, que se reporta à guarda e aos alimentos dos filhos. Acrescemos que filhos incapazes aí envolvem não apenas os incapazes por menoridade, mas também os maiores incapazes, por força do art. 1.590 do Código Civil – CC3.

O avanço foi importante e foi obtido ao sopro da notável prudência do CNJ no presente momento histórico. O CNJ fez o que era razoável dentro dos limites do poder regulamentar.

Infelizmente, porém, entendemos que haverá pouca utilidade prática quotidiana nessa opção. É que, como os consortes têm de se socorrer da via judicial para tratar das questões conexas relativas aos filhos incapazes, a eficiência aconselhá-los-á a pegar carona nessa via para resolver as demais questões.

Afinal de contas, não faz sentido deixar a questão principal (o divórcio ou a extinção da união estável) e as questões conexas do casal (partilha e alimentos) à espera do término do procedimento judicial prévio de interesse dos filhos incapazes.

Seja como for, aplaudimos a solução do CNJ, que foi a viável dentro do quadro legal atual neste momento histórico. Apesar da provavelmente baixa aplicação prática, esse avanço do CNJ é um sonoro alerta para o legislador apressar-se em eliminar as travas legais à extrajudicialização nesse ponto.

2.2. Escritura Pública de Declaração de Separação de Fato e Escritura Pública de Restabelecimento da Sociedade Conjugal

2.2.1. Separação de direito vs separação de fato e separação (de direito) judicial vs separação (de direito) extrajudicial

Antes de expor os avanços do CNJ, é preciso tomar cuidado ao tratar das nomenclaturas envolvendo o instituto da separação. Na prática, observamos haver certa confusão no uso das expressões.

De um lado, quanto à natureza, a separação pode ser dividida em duas espécies: separação de direito e separação de fato.

A separação de direito é a dissolução formal da sociedade conjugal por meio de um ato jurídico-formal. O STF entendeu que a separação de direito foi revogada pela Emenda à Constituição nº 66, ressalvadas as separações de direito anteriores à decisão do STF (STF, Tema nº 1.053).

A separação de fato: é a dissolução informal da sociedade conjugal por meio da cessação, de fato, da convivência more uxorio (que também pode ser chamada de comunhão plena de vida, expressão utilizada no art. 1.511 do CC). Essa separação de fato ocorre quando o casal deixa de, na prática, compartilhar plenamente a vida. Essa cessação da convivência pode acontecer por conduta espontânea do casal (ex.: um dos cônjuges sai “de casa”) ou por eventual decisão judicial. Quando se trata de uma decisão judicial, esta geralmente ocorre em duas hipóteses principais: (a) uma decisão cautelar ou definitiva conhecida como separação de corpos, expressão forense mencionada pelo art. 1.562 do CC; ou (b) uma decisão de medida protetiva de afastamento do lar, com fundamento na Lei Maria da Penha.

De outro lado, a separação de direito (e não a separação em geral!) pode ser classificada em duas espécies quanto à sua constituição: (1) separação judicial: quando a separação de direito se constitui por uma decisão judicial; e (2) separação extrajudicial: quando a separação de direito se constitui por uma escritura pública. Ambas as hipóteses não mais subsistem à vista da supracitada decisão do STF (STF, Tema nº 1.053).

Como se vê, atualmente existe apenas a separação de fato, que é um ato jurídico-informal, e não um ato jurídico-formal.

A principal utilidade prática da separação de fato é que ela faz cessar os efeitos do regime de bens. Assim, se o casal se separou de fato, não haverá mais comunicação de bens que vierem a ser adquiridos por qualquer dos consortes separados. Trata-se de aplicação analógica do art. 1.576 do CC, que atecnicamente apenas se refere à separação judicial.

Diante disso, para evitar litígios futuros, é conveniente que a data da separação de fato esteja devidamente comprovada, por ser o marco temporal a partir do qual não haverá mais comunicação de bens.

A prova dessa data pode ser feita por qualquer meio (conversa de whatsapp, testemunhas etc.). Todavia, é conveniente que haja uma prova mais estável e unívoca.

Quando a separação de fato decorre de uma decisão judicial (como a de separação de corpos ou de medida protetiva de afastamento do lar), a prova estável e unívoca é esse ato formal do Poder Judiciário.

Quando, porém, a separação de fato deriva de conduta espontânea do casal (ex.: o consorte “saiu de casa”), é preciso certa margem de criatividade para buscar provas estáveis e unívocas a fim de reduzir riscos de litígios futuros. É nesse contexto que está um dos recentes avanços normativos do CNJ, que trata da Escritura Pública de Declaração de Separação de Fato, sobre a qual discorreremos mais abaixo.

2.2.2. Escritura Pública de Declaração de Separação de Fato

O CNJ disciplinou a Escritura Pública de Declaração de Separação de Fato. Veja que se trata de uma declaração de separação de fato, pois ela apenas atesta um fato que já pode ter ocorrido: a restauração da convivência more uxorio do casal.

Essa escritura é título hábil para os registros públicos (Registro Civil das Pessoas Naturais e o Registro de Imóveis, por exemplo) e para outras instituições públicas ou privadas pertinentes (arts. 3º e 52-A e seguintes da Resolução nº 35).

Na prática, a referida escritura poderá lidar com todas as questões conexas do casal (partilha de bens e alimentos), à semelhança do que se dá com o divórcio extrajudicial. Prova disso é que as partes, entre outros documentos, têm de apresentar prova da titularidade dos bens do casal a serem partilhados (art. 52-B4).

Além disso, a referida escritura poderá ser averbada no assento de casamento, de modo a publicizar a situação de separação de fato. Não há obrigatoriedade na averbação, embora ela seja aconselhável para fins de publicidade a terceiros. A omissão nessa averbação não pode prejudicar terceiros de boa-fé que, confiando nos registros públicos, ignorem a separação de fato

Em princípio, nada impede que o casal faça um instrumento particular de declaração de separação de fato. Todavia, esse título não será averbável no assento de casamento, porque a Resolução do CNJ exige escritura pública.

Também nada impede que o casal deixe de celebrar qualquer instrumento para atestar a separação de fato. Todavia, essa conduta poderá gerar futuros litígios para comprovação, por outros e-mails, da data da separação de fato. Esse tipo de litígio pode acontecer especialmente se, com base nas regras do regime de bens do casamento, algum dos cônjuges separados de fato vir a pleitear a comunicação de algum bem adquirido pelo outro.

Cabe um alerta: em regra, a Escritura de Separação de Fato não é cabível quando existirem filhos incapazes ou nascituro do casal (art. 52-B, “h”). Entendemos, porém, que, apesar do silêncio da Resolução nº 35, é cabível a aplicação analógica da exceção prevista para o divórcio extrajudicial no § 2º do art. 34: é cabível a escritura pública de declaração de separação de fato se as questões conexas do filho já tiverem sido resolvidas judicialmente.

Nesse sentido, indaga-se: por qual razão o casal faria uma Escritura de Separação de Fato, e não uma de Divórcio?

A resposta está na questão principal envolvida: o estado civil. Quando o casal opta pela separação de fato, é por que eles apenas querem “dar um tempo” do casamento, para refletir se realmente querem romper ou não o vínculo matrimonial. Se eles quiserem restaurar a sociedade conjugal, não haverá necessidade de celebrar um novo casamento; basta o casal voltar a, de fato, conviver de modo more uxorio.

A restauração da convivência more uxorio é chamada de restabelecimento da sociedade conjugal. Trata-se de expressão que é plenamente extensível para a separação de fato, apesar de ter sido tradicionalmente utilizada em caso de separação de direito. Afinal de contas, ambos os tipos de separação representam a ruptura da sociedade conjugal.

2.2.3. Escritura Pública de Declaração de Restabelecimento da Sociedade Conjugal

No caso de separação de fato, a sociedade conjugal, ou seja, a convivência more uxorio (ou a comunhão plena de vida) cessou de fato. O casal está apenas casado “no papel”: há apenas o vínculo matrimonial. Popularmente, isso ocorrerá quando o marido ou a esposa “sai de casa”.

Para restabelecer a sociedade conjugal, basta o casal voltar a, de fato, ter a convivência more uxorio. Popularmente, é quando o marido ou a esposa “volta para casa”. Trata-se, pois, de um fenômeno fático.

O casal pode comprovar esse restabelecimento da sociedade de fato por qualquer meio. Uma das opções é a Escritura Pública de Declaração de Restabelecimento da Sociedade Conjugal (arts. 52-B e 52-C da Resolução nº 35).

Destacamos o verbete “declaração”, porque essa escritura apenas atesta um fato que já pode ter ocorrido: o ato tem efeito meramente declaratório. Embora os arts. 52-B e 52-C da Resolução não tenha utilizado esse verbete, recomendamos seu uso pelos tabeliães na escritura para realçar a natureza declaratória do ato.

Se o casal tiver averbado a separação de fato no assento de casamento, a averbação do restabelecimento da sociedade conjugal só poderá ocorrer mediante Escritura Pública de Declaração de Restabelecimento da Sociedade Conjugal. Cabe ao casal promover essa averbação para fins de publicidade a terceiros. A omissão nessa averbação não pode prejudicar terceiros de boa-fé que, confiando nos registros públicos, tenha considerado o casal separado de fato.

Seja como for, ao menos no âmbito do cartório de notas, é dever do próprio tabelião anotar, na anterior escritura pública de separação de fato, a lavratura da escritura de restabelecimento da sociedade conjugal (art. 52-D).

3. Avanços na extrajudicialização dos Procedimentos Escatalógicos de Direito das Sucessões

No Direito das Sucessões, passamos a destacar os principais avanços do CNJ nos referidos procedimentos extrajudiciais.

3.1. Inventário extrajudicial com testamento

Quando o falecido houver deixado testamento, é obrigatória a ação judicial de abertura, confirmação, registro e cumprimento desse testamento, a qual chamamos apenas de ação do testamento (arts. 735 a 737, CPC).

O objetivo é sujeitar o testamento a uma fiscalização judicial que descarte riscos de fraudes (ex.: testamentos falsos) e ateste a validade e a eficácia do testamento (ex.: o testamento ter observado as formalidades legais, não ter incorrido em caducidade, ruptura, desrespeito à legítima etc.).

Paralelamente a isso, dentro do prazo de 2 meses do falecimento, o inventário tem de ser iniciado (art. 611, CPC).

Daí se indaga: é cabível o uso da via extrajudicial para o inventário e partilha nessa hipótese de testamento?

O CNJ só a admite se a sentença transitada em julgado naquela ação do testamento tiver autorizado ou tiver declarado extinto o testamento (por inexistência, invalidade ou ineficácia) (art. 12-B da Resolução nº 35).

Portanto, as partes interessadas não podem se esquecer de pedir, na petição inicial da ação de testamento, a autorização para utilizar a via extrajudicial para o inventário.

Parece-nos que a razão de ser dessa exigência feita pelo CNJ é que o juízo da ação do testamento teria mais condições de avaliar se o caso concreto envolveria maiores riscos de burlas à vontade do testador se o inventário se processasse fora da supervisão judicial.

Há dois problemas práticos.

O primeiro é para cumprir o prazo de 2 meses para a abertura do inventário (art. 611, CPC), considerando que a ação do testamento pode vir a demorar. Não há dispositivo expresso na Resolução sobre isso.

Nessa hipótese, entendemos há duas opções.

A primeira é instaurar o inventário judicial dentro do prazo e, com o advento da sentença definitiva da ação de testamento, pedir a extinção do inventário judicial para se valer da via extrajudicial (art. 2º da Resolução nº 35).

A segunda opção é obter do juízo da ação do testamento uma tutela de urgência para autorizar, ainda que precariamente, a instauração do inventário por meio de escritura pública. Convém que o juízo autorize a nomeação de inventariante e a prática de todos os atos necessários à partilha, sem, porém, autorizar a conclusão desta enquanto não sobrevier o trânsito em julgado da ação de testamento.

Na prática, porém, notadamente nos Estados em que não há multa administrativa por atraso na abertura do inventário, antevemos que prevalecerá a informalidade quando as partes quiserem a via extrajudicial: as partes aguardarão o término da ação do testamento, ainda que venha a extrapolar o prazo do art. 611 do CPC.

O segundo problema prático é que as partes podem ter se esquecido de pedir a autorização para o juízo da ação de testamento. Nesse caso, entendemos que as partes podem pedir essa autorização no próprio processo judicial de inventário e partilha (art. 2 da Resolução 35) ou, se não houver, em um procedimento atípico de jurisdição voluntária (art. 719, CPC).

A solução acima foi a que o CNJ, dentro de seu elevado grau de prudência neste momento histórico, pôde avançar.

Esperamos que, em um futuro breve, o legislador avance não apenas na extrajudicialização do inventário e partilha, mas também no procedimento de abertura e confirmação do testamento. É que este procedimento deveria poder ser realizado por escritura pública mediante manifestação favorável da instituição incumbida de velar pelos interesses dos vulneráveis: o Ministério Público – MP. Com isso, eliminaríamos uma redundância desnecessária: a intervenção judicial quando o Ministério Público e o tabelião de notas são favoráveis. Lembramos que o tabelião também é profissional do Direito (art. 2º, Lei nº 8.935/1994). Quiçá, em outro momento histórico, esse avanço poderá até vir por ato do CNJ, caso o legislador siga omisso.

3.2. Inventário extrajudicial com interessado incapaz

Conforme art. 12-A da Resolução nº 35, se houver herdeiro ou meeiro incapaz, o inventário e partilha extrajudicial dependerá de dois requisitos adicionais: (1) a manifestação favorável do MP, que é a instituição incumbida fiscalizar os interesses dos incapazes (art. 127, Constituição Federal – CF; art. 178, II, CPC); e (2) partilha cartesiana em cada bem integrante do espólio (=falta de margem de manobra na partilha).

Em relação ao primeiro requisito adicional, se o MP discordar ou se houver impugnação de terceiro interessado, o caso deve ser encaminhado ao juízo competente. Temos que aí não se está a falar do juízo correcional em um procedimento administrativo, e sim do juízo em um procedimento jurisdicional. Isso, porque a própria Resolução é expressa quando alude à via administrativa (ex.: art. 12, § 2°, Resolução 35).

Entendemos, ainda, que o parecer ministerial é exarado antes da subscrição da escritura por todos os interessados, com base em minuta enviada pelo tabelião. Com o parecer favorável, o tabelião concluirá a escritura, acrescentando a notícia do parecer ministerial, arquivando o parecer e coletando as assinaturas das partes.

No tocante ao segundo requisito adicional, não há margem de manobra ao herdeiro incapaz na partilha dos bens na via extrajudicial. Em outras palavras, necessariamente, na partilha extrajudicial, o herdeiro incapaz terá de ficar com uma fração ideal sobre cada bem do espólio, vedada qualquer compensação.

Por exemplo, se o falecido tiver deixado dois herdeiros (um capaz e outro incapaz) e dois apartamentos (de valores iguais), o herdeiro incapaz necessariamente ficará com 50% de cada um dos apartamentos. É vedado que, na escritura de partilha, o herdeiro incapaz fique com um apartamento, e o outro herdeiro fique com o outro apartamento. Com essa solução, o CNJ impede que seja utilizada a regra da máxima comodidade dos coerdeiros e do viúvo na partilha dos bens, prevista no art. 648 do CPC.

A razão de ser da restrição é a de que, sem a intervenção judicial, haveria maior risco de o herdeiro incapaz, ao final da partilha, ficar em uma posição desvantajosa. Afinal de contas, é sabido que muitos bens, apesar de formalmente terem uma determinada expressão econômica à luz de uma avaliação pericial, são de difícil liquidação ou de deterioração ou desvalorização rápidas. Imagine, por exemplo, o espólio seja composto de um carro avaliado em R$ 500.000,00 e de um apartamento de R$ 500.000,00. Há dois herdeiros: um incapaz e outro capaz. É intuitivo que o carro é um bem pouco vantajoso para o herdeiro incapaz: além de ser um bem que rapidamente desvaloriza, há pouca utilidade prática ao herdeiro que sequer tem autorização estatal para dirigir.

A solução do CNJ acima foi a que os seus Conselheiros entenderam viável dentro do figurino legal atual. Talvez, em outro momento histórico, o CNJ possa encontrar apoio para avançar mais.

Seja como for, entendemos que cabe ao legislador eliminar o segundo requisito adicional acima: o da falta de manobra para o herdeiro incapaz na partilha. Isso, porque o Ministério Público é a instituição vocacionada à tutela do interesse dos incapazes. Parece-nos desnecessário ser redundantes ao exigir a intervenção judicial, ainda mais porque, segundo se sabe da praxe forense, é muito raro que – ao menos, em matéria de partilha de bens envolvendo menores – os juízes adotem solução diversa da preferida pelo Ministério Público.

Além disso, a solução de formar condomínio tradicional sobre todos os bens do espólio pode criar entraves burocráticos desnecessários até contra o herdeiro incapaz.

Pense, por exemplo, que o espólio seja composto de dois apartamentos, de igual valor: um na Alemanha, outro no Brasil. Há dois herdeiros: um herdeiro é incapaz e mora no Brasil; o outro é capaz e vive na Alemanha. Em situação como essa, a regra da máxima comodidade da partilha (art. 648, CPC) recomendaria o herdeiro incapaz ficar com o imóvel no Brasil, dada a maior facilidade de sua gestão para ele sem os transtornos próprios da gestão transnacional de bens. Várias outras hipóteses poderiam ser cogitadas.

O ponto é que, se o Ministério Público entende vantajoso para o herdeiro incapaz uma determinada partilha, parece-nos que o legislador deveria afastar a necessidade de intervenção judicial.

3.3. Alvará Extrajudicial de Venda de Bens

É comum o espólio ser composto apenas de bens diversos de dinheiro. Isso representa um problema operacional, porque, se os herdeiros não se dispuserem a desembolsar dinheiro do próprio bolso, a concretização do inventário e partilha será inviável por falta de dinheiro para pagar as despesas de transação. Chamamos de despesas de transação as necessárias à conclusão do inventário e partilha, como os honorários advocatícios, emolumentos, tributos etc.

A solução é a alienação de bens do espólio para, com o dinheiro obtido, pagar as despesas de transação.

Para alienar bens do espólio, o inventariante precisa de uma autorização (a que chamaremos de “alvará”). Esse alvará pode ser judicial, se tiver decorrido de decisão judicial, ou extrajudicial, quando decorrer de escritura pública.

O alvará extrajudicial dá-se por escritura pública nos termos do art. 11-A da Resolução nº 35.

A escritura pública exige consentimento unânime dos demais herdeiros e só pode ser realizada para uma finalidade: o custeio das despesas de transação do inventário e partilha. A escritura deverá vincular o dinheiro obtido com a venda ao custeio das referidas despesas.

Além disso, o inventariante tem o dever de prestar garantia de que, no caso de malversação das verbas obtidas com a alienação, reembolsará o espólio.

Diante disso, há dois grandes problemas práticos a enfrentar.

Em primeiro lugar, indaga-se: o alvará extrajudicial poderia ocorrer para pagamento de dívidas do próprio espólio, sem relação com a formalização do inventário e partilha (ex.: dívida de um empréstimo bancário não pago pelo falecido)?

A resposta é negativa, porque o art. 11-A, I, da Resolução nº 35 não as contemplou. Cabe aos herdeiros obterem um alvará judicial para tanto.

Em segundo lugar, pergunta-se: os herdeiros, de modo unânime, poderiam dispensar o inventariante de prestar garantia no âmbito do alvará extrajudicial?

A resposta é negativa, porque o art. 11-A, VI, da Resolução nº 35 não deu essa margem de manobra. Cabe aos herdeiros buscar a via judicial para obter um alvará sem exigência de garantia do inventariante.

Como se vê, o alvará extrajudicial possui esses dois pontos que o podem tornar desinteressante para as partes, o que as remeterão para a via judicial. Foi a solução que o CNJ entendeu viável dentro dos limites legais, neste momento histórico.

Entendemos que cabe ao legislador, com urgência, avançar e eliminar esses dois entraves, pois não nos parece razoável obrigar a intervenção judicial para lidar com atos de disposição patrimonial feitos com amparo na unanimidade dos interessados. A tendência é a atuação do juiz ser meramente a de chancelar a vontade dos interessados.

Quiçá, se o legislador se mantiver inerte, o CNJ – em outro momento histórico – possa vir a encontrar suporte para, por ato infralegal, eliminar esses entraves.

Fonte: Migalhas